Veja a coragem do poeta. Ferreira Gullar rasga o verbo e, com franqueza, experiência e coragem trata um tema que faz acovardar muito doutor. O abandono cuidadosamente planificado e disfarçado por um assistencialismo vago e vão dos doentes mentais e suas famílias no Brasil de hoje. O plano é executado a partir de algum gabinete escondido nos corredores do Ministério da Saúde. Seus resultados vão ficando cada vez mais evidentes, pelo desastre, do que pode parecer apenas pelos queixumes revoltosos de usuários do SUS (pacientes e familiares) reduzidos a um antro estreito. A verdade, cada vez mais demonstrada e transparente, vai rompendo a tosca barragem da fraseologia radical e das declarações furibundas dos chapa-branca que apoiam a política oficial. Leia aqui, do site da :: APBr – Associação Psquiátrica de Brasília :: a matéria sobre a desassistência aos doentes mentais, suas famílias e comunidades.
DESASSISTÊNCIA
Dr. Antônio Geraldo da Silva – Presidente da APBr, comenta o artigo:
Respeitado internacionalmente, o escritor, filósofo e poeta, Ferreira Gullar escreveu um artigo sobre a realidade brasileira na assistência aos doentes mentais e seus familiares. O texto, publicado pela Folha de São Paulo no dia 12 de abril, pode ser considerado um dos mais importantes já publicados desde a promulgação da lei 10.216.
Talvez por ser um familiar e não um médico e/ou político, Gullar tenha se referido à lei 10.216 como sendo a Lei do Deputado Paulo Delgado. Fato que não procede.
O Projeto de Lei do Deputado foi rejeitado no Senado com 23 votos contra e somente 04 a favor. Sendo assim, não existe nenhuma “lei Paulo Delgado”.
O que existe é um mesmo grupo estar à frente da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde há mais de 20 anos, sendo que na última década o Coordenador é o irmão do citado deputado, que vêm conseguindo publicar portarias que burlam a Lei 10.216.
A lei 10.216 é totalmente adequada às necessidades dos doentes mentais, seus familiares e dos profissionais comprometidos, mas está sendo distorcida em detrimento de uma proposta errada e rejeitada, que desde sua concepção estava fadada a levar nosso sistema público de assistência ao doente mental ao caos que estamos enfrentando hoje.
Infelizmente dos 120 mil leitos públicos que existiam, hoje temos apenas cerca de 38 mil. Em compensação, os leitos privados aumentaram consideravelmente – chegando a mais do dobro do número anterior.
Uma triste realidade. A desassistência à saúde mental reina no país.
Uma lei errada
Por Ferreira Gullar
A campanha contra a internação de doentes mentais foi inspirada por um médico italiano de Bolonha. Lá resultou num desastre e, mesmo assim, insistiu-se em repeti-la aqui e o resultado foi exatamente o mesmo.
Isso começou por causa do uso intensivo de drogas a partir dos anos 70. Veio no bojo de uma rebelião contra a ordem social, que era definida como sinônimo de cerceamento da liberdade individual, repressão “burguesa” para defender os valores do capitalismo.
A classe média, em geral, sempre aberta a ideias “avançadas” ou “libertárias”, quase nunca se detém para examinar as questões, pesar os argumentos, confrontá-los com a realidade. Não, adere sem refletir.
Havia, naquela época, um deputado petista que aderiu à proposta, passou a defendê-la e apresentou um projeto de lei no Congresso. Certa vez, declarou a um jornal que “as famílias dos doentes mentais os internavam para se livrarem deles”. E eu, que lidava com o problema de dois filhos nesse estado, disse a mim mesmo: “Esse sujeito é um cretino. Não sabe o que é conviver com pessoas esquizofrênicas, que muitas vezes ameaçam se matar ou matar alguém. Não imagina o quanto dói a um pai ter que internar um filho, para salvá-lo e salvar a família. Esse idiota tem a audácia de fingir que ama mais a meus filhos do que eu”.
Esse tipo de campanha é uma forma de demagogia, como outra qualquer: funda-se em dados falsos ou falsificados e muitas vezes no desconhecimento do problema que dizem tentar resolver. No caso das internações, lançavam mão da palavra “manicômio”, já então fora de uso e que por si só carrega conotações negativas, numa época em que aquele tipo hospital não existia mais. Digo isso porque estive em muitos hospitais psiquiátricos, públicos e particulares, mas em nenhum deles havia cárceres ou “solitárias” para segregar o “doente furioso”. Mas, para o êxito da campanha, era necessário levar a opinião pública a crer que a internação equivalia a jogar o doente num inferno.
Até descobrirem os remédios psiquiátricos, que controlam a ansiedade e evitam o delírio, médicos e enfermeiros, de fato, não sabiam como lidar com um doente mental em surto, fora de controle. Por isso o metiam em camisas de força ou o punham numa cela com grades até que se acalmasse. Outro procedimento era o choque elétrico, que surtia o efeito imediato de interromper o surto esquizofrênico, mas com consequências imprevisíveis para sua integridade mental.
Com o tempo, porém, descobriu-se um modo de limitar a intensidade do choque elétrico e apenas usá-lo em casos extremos. Já os remédios neuroléticos não apresentam qualquer inconveniente e, aplicados na dosagem certa, possibilitam ao doente manter-se em estado normal. Graças a essa medicação, as clínicas psiquiátricas perderam o caráter carcerário para se tornarem semelhantes a clínicas de repouso. A maioria das clínicas psiquiátricas particulares de hoje tem salas de jogos, de cinema, teatro, piscina e campo de esportes. Já os hospitais públicos, até bem pouco, se não dispunham do mesmo conforto, também ofereciam ao internado divertimento e lazer, além de ateliês para pintar, desenhar ou ocupar-se com trabalhos manuais.
Com os remédios à base de amplictil, como Haldol, o paciente não necessita de internações prolongadas. Em geral, a internação se torna necessária porque, em casa, por diversos motivos, o doente às vezes se nega a medicar-se, entra em surto e se torna uma ameaça ou um tormento para a família. Levado para a clínica e medicado, vai aos poucos recuperando o equilíbrio até estar em condições que lhe permitem voltar para o convívio familiar. No caso das famílias mais pobres, isso não é tão simples, já que saem todos para trabalhar e o doente fica sozinho em casa. Em alguns casos, deixa de tomar o remédio e volta ao estado delirante. Não há alternativa senão interná-lo.
Pois bem, aquela campanha, que visava salvar os doentes de “repressão burguesa”, resultou numa lei que praticamente acabou com os hospitais psiquiátricos, mantidos pelo governo. Em seu lugar, instituiu-se o tratamento ambulatorial (hospital-dia), que só resulta para os casos menos graves, enquanto os mais graves, que necessitam de internação, não têm quem os atenda. As famílias de posses continuam a por seus doentes em clínicas particulares, enquanto as pobres não têm onde interná-los. Os doentes terminam nas ruas como mendigos, dormindo sob viadutos.
É hora de revogar essa lei idiota que provocou tamanho desastre.
Veículo: Folha de S. Paulo
Seção: Opinião
Data: 12/04/2009
Estado: SP
Fonte:
Data: 05/02/2008
A Associação Brasileira de Psiquiatria, avalisando posição tirada pelo Conselho das Federadas da ABP, protocolou representação no Ministério Público, contra a coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde, pela deterioração geral da assistência prestada a doentes com doenças psiquiátricas de todos os tipos no Brasil e por não cumprir as metas traçadas pelo próprio Ministério para expandir o número de leitos psiquiátricos em Hospital Geral.
Leia a matéria:
MPF recebe representação da ABP
07/04/2009
Documento protocolado hoje alerta para o não cumprimento de legislação referente às políticas públicas de saúde mental
A ABP protocolou hoje no Ministério Público Federal uma representação que alerta para o não cumprimento, por parte da Coordenadoria de Saúde Mental do Ministério da Saúde, da Lei 10.216/2001, da Portaria nº 1.101, de 12/06/2002 (que estabelece o índice de 0,45 leitos por cada mil habitantes para atender a demanda por internação psiquiátrica no Brasil) e da Portaria nº 1899/2008, que criou o Grupo de Trabalho sobre Saúde Mental em Hospitais Gerais.
O documento detalha informações sobre a maneira como a reforma da assistência em saúde mental vem sendo implantada. Segundo a representação, o processo traz prejuízos ao atendimento da população que utiliza o Sistema Único de Saúde pelo baixo número de leitos hospitalares e pela insuficiência de instrumentos terapêuticos adequados.
Além disso, o texto demonstra que o Ministério da Saúde não cumpre os prazos e metas estipulados pela legislação e pelas portarias da área de saúde mental. Clique aqui e leia uma cópia do documento.
Para o presidente da ABP, João Alberto Carvalho, a iniciativa é um marco na atuação política da entidade. “Após diversas tentativas de colaborar com as autoridades para a condução adequada do processo de mudança no modelo de assistência, decidimos que é o momento de cobrar incisivamente o cumprimento da legislação referente à saúde mental”, declarou.